A temperatura baixou significativamente nos últimos dias. A chuva, aborrecida, teima em estragar esta Páscoa que vai passando. Já amanhã é segunda -feira…
Mas retrocedamos um pouco. Cheguemos ao sábado passado, ontem portanto. Como não tenho condições financeiras para abandonar a nossa vila e ir a caminho dos Algarves ou outros quejandos, quedei-me por cá, pelas Terras do Mestre com vistas largas para o Maranhão. Mas por ser Sábado de Aleluia, resolvi fazer um repasto melhorado para o jantar. Ao fim e ao cabo é Páscoa. Ao fim e ao cabo joga o Benfica.
Sopa de hortaliças variadas, pão fatiado do Cano, queijo da Monforqueijo, borrego assado no forno e costeletas do mesmo animal grelhadas no carvão, pudim Flan que faz parte do meu imaginário, duas gelatinas, e uns camarões de Moçambique (supõe-se) grelhados. Vinho. Uma garrafa D. Cosme, que mão amiga me ofereceu pelo Natal. Sim que a minha bolsa não chega para comprar estas extravagâncias. Café da Delta Cafés, uísque e uma boa aguardente velha de que muito gosto e de nome Antíqua. Ao fim e ao cabo sempre me sairia mais barato do que ir jantar fora e quiçá com menos qualidade. Os dotes culinários da minha mulher já os conheço bem e por isso quando me sentei na mesa senti-me um “lorde” que estivesse convidado para a boda do príncipe Williams…
Na mesa uma linda toalha de linho que fora da avó da minha mulher, talheres de prata, oferta que tivera no meu casamento, pratos de sopa, segundo e doce. Guardanapos de papel especial para a época. Nada, pensava eu, poderia estragar este belo jantar de sábado de Aleluia. Nem mesmo um mau resultado do Benfica. Abanquei pois com vontade de dar ao dente.
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Batem à porta. Um bater suave, como se quem o estivesse a fazer desejasse tudo menos que não lhe abrissem a porta. Por estar do lado de fora da mesa, fui eu que me levantei e fui abrir a porta. Deparei-me com um homem alto, de óculos escuros, fato completo com gravata, cabelo grisalho penteado para trás. Embora me parecesse ser conhecido, não queria acreditar. Perante mim, à minha porta e a querer entrar, estava precisamente Poul Thomsen, o homem forte do FMI em Portugal.
Cumprimentei-o, num aperto de mão franco como só os Alentejanos sabem fazer quando cumprimentam desconhecidos.
- Faça favor de entrar. Maria: põe aí mais uns pratos que temos visitas….gritei para a minha esposa
E que visitas!...
Por causa da chuva a que já me referi, e porque a minha mulher é muito “comichosa” com o sujar do chão, à minha porta temos dois tapetes para limpar os sapatos/botas. Poul, olhou para o chão e depois para mim, de sobrolho carregado,disse-me:
- Não acha um desperdício dois tapetes? Um não faria o mesmo serviço? O quê? Ainda mais um aqui dentro? Como é que vocês, não hão-de estar como estão? Três tapetes, quando só têm dois pés? Desperdício de dinheiro é o que eu começo já a ver…
Encolhi-me, e dirigi-me à sala de jantar enquanto Mr. Poul me seguia. A mesa já tinha sido reforçada com mais uns pratos e talheres completos. A cadeira da visita também já estava colocada em sítio estratégico, bem virado para a Televisão, para que nada faltasse a tão distinto quanto inesperado hóspede.
Antes de se sentar, Mr. Poul deu um relance pelas paredes da casa, depois “sobrevoou” a mesa e tudo quanto nela estava, de cima dos seus quase dois metros de altura. Sentou-se e quase gritou:
- O quê? De braseira eléctrica ligada, em Abril? Mas que desperdício é este? Mas que povo é este? Meus amigos, vocês ainda não ouviram falar em crise? Desculpe, desligue imediatamente a braseira e se for caso disso, enrolem uns trapos aos pés e às pernas. Gastar electricidade por causa do frio isso é que nunca…
Comecei a sentir um certo desconforto. Então a gente está na nossa casa e vem um gajo qualquer de fora administrar o que é nosso? Vem lançar postas de pescada para o nosso lar?
- Portugueses gastadores. Este queijo é de onde?
- É de Monforte Mr.Poul…
- De Monforte? Então não há queijo aqui de mais perto e mais barato? Não se deve comprar nada que diste mais que um concelho do nosso. Se não tem queijo fabricado em Avis podem comprar no Cano que há lá muito…
- Pois Mr. Poul nós tínhamos a Fábrica do Leite que fazia queijos mas já não temos, fechou…
- Fechou, está fechada. Que quer fazer? Ir atrás dela? Já sabe, comprar só no concelho…ou no mais próximo possível.
Cada vez mais acabrunhado, tentei meter uma cunha em minha defesa:
- Pois, olhe…o vinho é cá do Concelho. É da Fundação Abreu Callado, de Benavila…
- D. Cosme? Mas você tem uma família com ministros ou quê? D. Cosme? Mas isso é um vinho caríssimo. Como pode você ter dinheiro para fazer face á crise a beber D. Cosme?
- Sabe, Mr. Poul, uma pessoa amiga deu-me essa garrafa pelo Natal…
- Corrupto! Você é mais um dos corruptos que enxameiam este Portugal. Esse seu amigo deu-lhe a garrafa a troco de quê? De que favores? O que é que lhe facilitou?
Senti-me tremer por dentro e por fora. Uma baga de suor frio desceu-me da testa. Mas tive medo de reagir. Calei-me mais uma vez, como fizera em tantas vezes da minha vida em que deveria ter falado, ter dado um murro na mesa, ter dito basta! Aquele era o novo dono de Portugal…
- Espere aí…estarei a ver bem? Então vocês têm três pratos na mesa para cada um? E dois tipos de doces? Mas que desperdício é este? Não podem comer a sopa, o segundo e o doce no mesmo prato? Já viram a quantidade de detergente que vão gastar para lavar tanta loiça? Mesmo que seja Fary! A crise “exige” que se coma só num prato. E não esquecer, a partir de agora não há doces para ninguém. Bebam água que é mais barata e ao fim e ao cabo faz o mesmo efeito.
- Mas nós costumamos…
- Costumamos, não. Costumavam! A partir de agora é só um prato. E que isto fique bem entendido porque agora quem manda sou eu. Não se esqueçam que sou o Presidente do FMI em Portugal e eu é que manado aqui! E para que isto fique bem claro, esses talheres de prata que vocês aí têm, vou levá-los e entregar ao Sr Sócrates para ele poder permutar aquando das negociações com o Fundo. Percebido?
- Sim Senhor Poul…quere que eu mude de canal, quer ver a CNN?
- Não! Quero é que desligue a Televisão. E de todo, não quero ver o sinal encarnado ligado que está sempre a gastar energia. Era o que faltava estar-se a jantar e a ver televisão. Outra coisa que tem de acabar, é estas bebidas caras.
Uísques e Antíguas? É isto que levou Portugal para onde está. Viver acima das posses é no que dá sempre! Eu nem acredito, então uns pelintras como vocês dão-se ao luxo de comer camarão de Moçambique? Que seja a última vez. Minhocas, minhocas é que vocês devem passar a comer. Entenderam?
Nisto a minha mulher tenta pôr água na fervura:
- Olhe senhor… hoje também temos uma mesa mais farta porque já vivemos o espírito do 25 de Abril que é já na segunda feira…daí o borreguinho em dose dupla…
- Qual 25 de Abril qual quê? Por causa do 25 de Abril é que vocês estão neste estado. Mal governados. Mal governados e desorientados é que os Portugueses são.
A minha Maria, defensora acérrima do 25 de Abril e todas as suas conquistas, começou a mudar de côr. O bem disfarçado buço, começou a crescer, vi os olhos a querem sair das órbitas, vi como as unhas se transformavam em garras afiadíssimas, vi ali mesmo num ápice transformar-se numa espécie de Gigante Adamastor e vi como ela, feita monstro, se lançou, qual abutre sedento de sangue e vingança, sobre o pescoço do Sr. FMI. Este jazia agora no chão, prostrado, morto e bem morto.
Apressado, agarrei na garrafa de vinho D. Cosme e corri para o escritório do advogado mais famoso da terra, no sentido de lhe oferecer aquela garrafa do melhor vinho da Fundação Abreu Callado. Iria tentar comprá-lo, corrompe-lo, em troca duma defesa acérrima da inocência da minha mulher.
Não cheguei a saber como as coisas acabaram, porque no preciso momento em coloquei o dedo em cima da campainha da porta do Dr. Defesas, o que ouvi não foi a campainha a tocar mas foi o despertador do meu quarto que resolveu cumprir a sua missão: despertar-me. Estava suado.
Sinceramente não sei onde é que a gente vai arranjar sonhos destes…mas que existem, existem até em noites de Domingo de Páscoa