Ontem brinquei ao faz de conta dos poetas
E fiz uma quadras, umas cantigas,
Coloquei as palavras quase certas
Deitei a métrica e a pontuação às ortigas!
Ontem fiz de conta que brinquei ao faz de conta
Como se tivera precisamente sete anos
Tal e qual como quando era uma criança, meio tonta
Que desconhecia ainda da vida os desenganos!
Ontem fiz de conta que minha mãe não morreu
E que nem sequer é aquela estrela brilhante
Que a nuvem negra da morte escondeu,
E que jamais me olvidou no seu esplendor radiante!
Ontem fiz de conta que era mil nove cinquenta e sete
Que está um frio que nos faz até tremer
E que o meu paizinho ainda me promete
Que vão chegar muito boas prendas para eu ter!
Ontem fiz de conta que tu, minha mãe, fazias
Não só para mim mas para nós
Meia dúzia de azevias
Depois mais meia dúzia de filhós!
Ontem fiz de conta que o meu adorado pai
Já limpara a chaminé sem eu mesmo saber
Pois vai ser ali por ela que a apetecida prenda cai
Quando o Menino Jesus descer!
Ontem fiz de conta que o meu sapatinho
Vai ter poucos presentes
Por ser assim tão pequerruchinho
Só terá coisas mais urgentes.
Ontem fiz de conta que acreditava
Ainda no Menino Jesus ou Pai Natal
E que não era os meus pais quem comprava
E isso não me fez sentir nada mal.
Ontem fiz de conta que já estava deitado
À espera do meu ansiado Menino
Com um olho aberto e outro fechado
Tal qual como quando era pequenino.
Ontem fiz de conta que já era velho
Com umas enormes barbas brancas
Mirei-me no meu partido espelho
E descortinei milhões de rugas. Ena tantas…
Ontem fiz de conta que não há crianças mal tratadas
Que todas saltam e brincam felizes
Dia a dia esperançadas
Na vontade de deixarem de ser petizes.
Ontem fiz de conta que era um bom cidadão
Lembrei-me dos meus amigos
E no grande livro do coração
Li o nome dos que são mais antigos.
Ontem fiz de conta com uma prendinha
Colocada lá bem no fundo do sapatinho:
Feita de chocolate, uma sombrinha
E do mesmo doce um pequenino ratinho.
Ontem…bem, ontem fiz de conta que havia paz
Em toda a parte do mundo
E assim, finalmente, fui capaz
De entrar num sono profundo.
“DO CASTELO”, 24 de Dezembro de 2006