“DO CASTELO” teve acesso ao conto em causa e tendo obtido autorização do seu autor passa a reproduzi-lo sem que no entanto deixe aqui a opinião de que, embora a “letra e os arranjos” sejam do autor, – que preferiu o anonimato – dá a impressão que há por lá“música” do seu primo do MARANHÃO…Parabéns para ambos.
Eis então a obra premiada, que aconselho a ler, caso tenham paciência para tal, pois que ao lê-lo, os mais novos ficarão com conhecimentos de coisas que se passaram na nosssa terra e que desconhecem, e os mais velhos poderão recordá-las.
Título: CIDADÃO DE CORPO INTEIRO
Sentia-se desiludido, frustrado. Sentou-se à porta da fábrica de confecções que acabara de encerrar a sua actividade deixando mais de quarenta empregadas sem emprego. Alguns colegas diziam-lhe que tudo tinha feito enquanto delegado sindical, mas a sua consciência não se queria acomodar. Ficava hoje, como noutras situações semelhantes, sempre com a sensação de que poderia ter feito um pouco mais, não sabendo no entanto qual o passo que deveria ter acertadamente dado e não dera.
Ali, nas escadas de acesso à fábrica, vira sair pela última vez, cabisbaixas, com lágrimas de revolta e desespero no rosto, as suas colegas. Colegas desta fábrica porque a dele, era de maior impacto e, pelo menos para já, não corria o perigo de encerramento. Como que para aquietar aquela ansiedade provocada pela tal sensação de que poderia ter feito mais, reviveu em pensamento todo o seu percurso de intervenção, enquanto cidadão que sempre exerceu os seus direitos de cidadania, numa sociedade que era de todos mas que parecia só a alguns pertencer. Ele tomou posições, interveio! Recorda todo um passado:
… Decorria o ano de 1976 com todas as maravilhosas “loucuras” que o 25 de Abril trouxera dois anos atrás. Manuel Alves estudava então no Liceu D. Amália, no 5º ano. Tinha dezasseis anos. Lembra-se que nesse já distante ano, em determinada altura a turma foi informada de que existia um Movimento chamado ALFA, que era constituído por Brigadas Estudantis de Trabalho e Alfabetização. Constava-se que o Movimento tinha nascido em 1951 na Universidade da Califórnia, em Los Angeles e que se estendera a grande parte doutros países. Claro que em Portugal nunca se ouvira falar de tal por causa do sistema de repressão até há pouco instalado. Entre a maioria dos colegas do Liceu ficou bem expressa a ideia de embarcar nesse sonho de ir para qualquer parte do país trabalhar, no período de férias, e em horário pós-laboral poder ensinar a ler e a escrever quem não o soubesse fazer e ainda promover acções de índole de animação cultural. O entusiasmo foi de tal ordem que mal as férias de Verão começaram, aqueles que quiseram e puderam – houve pais que não autorizaram os filhos a aderir a essa aventura – lá partiram qual bando de andorinhas voando nas mais diversas direcções. Estas acções eram concertadas pelo Movimento ALFA, e Manuel Alves, apesar de ser oriundo de uma família pertencente a um estrato social de média capacidade económica, tinha uns pais de mente aberta e não foi difícil conseguir-lhe a autorização para poder partir. Escolheu o Alentejo para seu destino, como poderia ter escolhido outra qualquer parte do país. No entanto sempre ouvira dizer que era no Alentejo que existia a maior taxa de analfabetismo e que era ali que as condições de trabalho eram mais duras, quase desumanas. Integrado numa brigada de dez elementos foi parar a Montemor-o-Novo, à Cooperativa Agrícola Montemorense, sedeada na Herdade da Torre. Alfredo Maria Praça Cunhal era o nome do proprietário da Herdade, se a memória não o atraiçoa. Que estranha coincidência de apelidos…
As recordações aqui entram em turbilhão. Tanta coisa bonita que por lá fez... Lembra-se de múltiplas situações. Tenta pôr um mínimo de ordem para que possa reviver cada uma com calma. Não lhe interessa que esses momentos sejam revividos por ordem cronológica. Não! Quer é vivê-los com o realismo e com o carinho que eles lhe merecem. Recorda que a sua integração e a dos colegas foi muito bem aceite pelos defensores da Reforma Agrária: importava lá que eles fossem da cidade e não soubessem trabalhar? Vinham para ajudar e isso já era mais que suficiente. Pelo menos tinham espírito revolucionário. Por outro lado, os mais conservadores, aquilo a que à altura eram chamadas de “forças da reacção” não os podiam ver. Insultavam-nos e por vezes até os tratavam mal, como daquela vez em que estava com uns colegas da sua brigada a beber umas cervejas numa esplanada em Montemor e parou uma carrinha de caixa fechada, que transportava quatro indivíduos. Pararam e repentinamente despejaram uns baldes com água para cima deles. Chamaram-lhes nomes menos dignos e fugiram de seguida. Apesar disso era dignificante pertencer ao Movimento ALFA. Por razões que não sabe explicar, ele, Manual Alves, começou a ser olhado pelos camaradas como uma espécie de líder daquela brigada. Não havia líderes mas ele estava sempre no centro das conversas à volta do que se iria ou não fazer. Era considerado, e isso, naquela idade, envaidecia-o um pouco.
Trabalhavam no duro e com gosto: carregavam-se fardos de palha, inclusivamente pelas horas de calor. Recorda-se da primeira vez que fizeram esse serviço. Foram-no na maior descontracção. Trabalharam como puderam e souberam, e à hora do almoço cada trabalhador puxou do seu tarro onde guardava o que comer. Estes começaram a olhar uns para os outros quando lhes perguntaram pela comida. Responderam que não traziam e então, depois de bem “gozados” pelos trabalhadores, como não podia deixar de ser, comeram dos almoços deles. Ao outro dia já levaram almoço, só que em vez da sopa e das azeitonas levaram frangos assados que acabaram por dividir igualmente entre todos. Depois do trabalho transmitiam então os tais ensinamentos de alfabetização. As mulheres eram mais fáceis de convencer. Os homens eram renitentes e não poucas vezes era necessário ir até à tasca beber uns copos com eles, e convencê-los de que aprender a ler e a escrever era muito bom para todos e só lhe trazia vantagens.
Manuel Alves sorri ao de leve. Quem o visse sorrir diria que aquele delegado sindical que “deixa” fechar uma fábrica e que ainda sorri, não pode ser bom delegado sindical. Não sabe é que pela cabeça do Manuel Alves repassa aquela cena de certa noite em que ele mais três colegas da sua brigada (um da Marinha Grande, outro de Braga e uma colega do Porto, que até era do CDS) resolveram ir convencer uns amigos a inscreverem-se na alfabetização. Foram até uma taberna em Montemor. A camioneta da carreira que tinha um apeadeiro na estrada que distava cerca de três quilómetros da Herdade da Torre, partia às sete da tarde. Conhecedores daqueles cabeços e veredas como ninguém, os novos amigos dos copos disseram-lhes que não era necessário irem de camioneta, que se seguissem o caminho que eles lhe indicavam, chegariam depressa à Cooperativa. E ele e os colegas ficaram. Acabaram por convencer três homens a inscreverem-se. Ficaram radiantes. Por volta das onze da noite puseram-se a caminho, pois que segundo a explicação que lhes tinha sido dada “ o monte era logo ali”. Qual ali, qual quê! Perderam-se e só chegaram ao monte por volta da três da manhã. Mas o orgulho de quem tem dezasseis/dezassete anos e sabe que está ali por uma causa nobre, não se compadece com noitadas e no outro dia de madrugada, lá estavam todos à hora de pegar no serviço, como se tivessem passado uma noite bem repousada. Havia que demonstrar que afinal eles não eram “copinhos de leite”, como alguns lhes chamavam, e que eram suficientemente responsáveis para cumprir com as suas obrigações.
Trabalhava-se muito na base da solidariedade. Lembra-se que certa vez um pequeno proprietário, que até não era do Partido Comunista, tinha uma seara de grãos para apanhar. Pediu ajuda à Cooperativa e lá foram três brigadas do Movimento, a sua e mais duas, o equivalente a trinta pessoas. Começando às quatro da manhã, a verdade é que em pouco tempo o grão ficou todo apanhado. Por vezes havia que ir trabalhar para outros locais. Lembra aquela vez que foi necessário ir para os campos de uma das Cooperativas mais emblemáticas do Alentejo: a Cooperativa Agrícola 1º de Maio, em Avis. Foram para a apanha do tomate, a convite do seu presidente, o camarada Zé Luís. Não sabe quantas brigadas foram. Sabe que foram muitas e que os campos de tomate eram a perder de vista. As terras eram boas e a água do Maranhão aliada ao saber fazer daquela boa gente de Avis, tinha necessariamente que dar uma enorme produção. A transformação era feita ali mesmo em Avis numa fábrica que, recorda, dava pelo nome de SULEI. Enquanto trabalhavam cantavam canções do António Correia de Oliveira, do José Afonso, do Manuel Freire e de outros intervencionistas, e ainda uma canção muito em voga nesse tempo, que dizia que “uma gaivota, voava, voava…” Já não se recorda quem a cantava. Apenas sabe que era uma mulher. Em Avis cruzaram experiências com outros colegas do Movimento que ali estavam colocados. À noite assistiam e ajudavam nas aulas. Ao fim de oito dias regressaram a Montemor certos que voltavam mais enriquecidos pelas experiências trocadas e pela ajuda prestada.
Outra cena lhe ocorre. Havia sempre dois colegas que ficavam na Cooperativa da parte da tarde, para fazerem o jantar deles e daqueles que tinham ido trabalhar. Era um sistema rotativo. Certo dia tocou-lhe a ele Manuel Alves e a outro “puto” de Cascais. A verdade é que eles nem um ovo sabiam estrelar. Ajustou-se que iriam buscar um frango à vizinha que morava ali no monte e que se faria frango à jardineira. Conforme combinado foram buscar o frango que a senhora já tinha feito o favor de matar. Disseram-lhe que tinham pouca experiência de cozinha ao que ela contrapôs que tinha pouco que fazer: cortavam o frango aos bocados pequenos, juntavam-lhe cebola, salsa, batatas….tudo muito bem explicado. Regressaram à cozinha da Cooperativa e ficaram a olhar um para o outro. O colega de Cascais até confessou que nem lhe tinha passado pela cabeça que os frangos tinham penas pois que quando os via no talho já estavam sempre depenados. Passada uma boa meia hora, a vizinha veio ver se estava tudo a correr bem. Mas nem bem nem mal, pois que eles ainda não tinham feito nada. Então ela, alentejana dos quatro costados, decidida disse: “Vamos lá a isto! Ponham uma panela de água a aquecer para depenar o frango!”. Depenou o frango e depois de deixar já tudo ao lume, disse-lhes que aí ao fim de uma hora podiam apagar o fogão que estaria o jantar pronto. Chegaram os colegas do trabalho e ficaram todos com água na boca só do delicioso cheirinho que invadia a cozinha e anexos. Eles eram os melhores cozinheiros que lhes tinham tocado. À hora do jantar, comeram, gostaram e elogiaram-lhe o trabalho e estava já meio decidido que ficariam nomeados cozinheiros permanentes. Ele e o Alcides de Cascais estavam radiantes. Ficar de cozinheiro significava poder usufruir de um banho no tanque que era alimentado por uma regato de água natural que corria a céu aberto desde a nascente até ao tanque. A água estava sempre limpa. Depois, com a ajuda da vizinha, o jantar tinha a garantia de sair sempre bem. Mas, eis que quase no fim do banquete chega a vizinha e diz: “Então o jantarinho está bom? Ai estes meninos, estes meninos…se não fosse eu, esta noite não jantavam!”. Desmascarados, a situação inverteu-se: nunca mais ficaram na cozinha, nem ele nem o Alcides de Cascais.…Um salto repentino interrompe-lhe a visão daqueles primeiros dias em que sente que exerceu o seu direito de cidadania de uma forma quase instintiva. Avança no tempo e recorda: os estudos não lhe correram de feição acabando por se empregar numa fábrica de confecções. Com as marcas de solidariedade que as experiências do Movimento ALFA lhe deixaram, foi eleito Delegado Sindical da Indústria de Confecções, continuando assim a exercer o seu direito de cidadania. No seu cargo granjeou amigos e inimigos, como a colega Daniela, da Secção de Corte, que lhe disse certa vez que os Delegados Sindicais não faziam nada e eram sempre os últimos a serem despedidos. Não ligou a isso e sempre trabalhou em prol da defesa dos colegas trabalhadores e em busca de melhores condições de trabalho. Se hoje se sente abatido à saída daquela fábrica de Confecções, é porque efectivamente sente que podia ter feito mais, mas não sabe bem o quê. Isso preocupa-o e entristece-o muito, mas sabe que não é pessoa para desistir e que vai continuar a lutar por uma sociedade mais justa.
Foi o último a abandonar as instalações, continua empregado e, sem saber porquê, lembrou-se da colega Daniela, já despedida por ter chegado, uma só vez, atrasada…