Quando já temos uma certa idade, por vezes repetimo-nos sem darmos por isso. Sei que vou dizer uma coisa que quem está habituado a ler as linhas que por aqui vou deixando escritas, já sabe. Vou, pois, repetir-me, mas em consciência: Não gosto de ir às compras. Detesto aquela lufa-lufa do entra e sai das lojas, o vê preços, analisa e não compra. Mas todos os anos me tocam várias cenas dessas. Uma delas é inevitavelmente pelo Natal. Daí, talvez a minha cada vez menor simpatia por este período do ano.
Desta vez “o dia do sacrifício” calhou na passada terça-feira. Local escolhido: o Centro Comercial Colombo, em Lisboa.
Chegados, fizeram-se duas equipas: quem anda pouco ou se cansa mais depressa, fica no rés-do-chão, quem anda mais ou precisa de estar presente aquando dos pagamentos, sobe até ao 1º andar. E lá fui eu escadas acima.
Ao fim de quatro horas (leram bem, quatro!) de entra e sai, vê, apalpa e franze o sobrolho, já mal me arrastava nas minhas bem engraxadas botas da Campor. Quando passei por um largo do Colombo onde pululavam para aí tantas pessoas como a população da freguesia de Avis (ou um pouco menos), reparo que havia uns sofás colocados ali estrategicamente para pessoas como eu ou, quem sabe, ainda pior do que eu. Estanco a uma distância ainda considerável, analiso o local, mas depressa me apercebo que está tudo ocupado. Como eu, havia ali muita gente a contra gosto. Digo à minha companheira compradora-gastadora-não-pagadora que fico ali e que quando for preciso ir pagar que me venha chamar. Nisto, olho e… sorte das sortes! Acaba de sair um velhote dum dos sofás! Avanço resoluto, mas como dizia o meu sogro acerca dos cães de caça que nada mais viam que a caça a fugir à frente deles: “ceguei na carreira”! não me apercebi que mais perto do local de sossego havia outra “alma” sedenta de descanso e, enquanto eu me dirigia para o sofá o ocupou mesmo já ali nas minhas barbas. Mudei de estratégia: fiquei atento pois que aqueles locais não são de ocupação prolongada. Em breve haveria outra vaga. E tal como os forcados que ao serem derrotados numa primeira pega de caras, à segunda tentativa se aproximam mais da fera, aproximei-me também eu. Coloquei-me ali bem perto da zona de lazer, e ao ver que um casal jovem se começava a levantar, aproximei-me e…zás! Ainda a senhora não tinha aconchegado bem as calças que haviam descaído pela posição de sentada, e já eu me estava a estatelar num sofá individual. Sentei-me, melhor atirei-me assim quase de maço, e senti-me bem. Confortável. Situo-me no espaço e no tempo: são 18 horas da última terça-feira antes do Natal de 2010, tenho em frente uma loja da Pull and Beer, um pouco à esquerda a montra da OySho, ainda mais para a esquerda do local onde me encontro, a Zara.
Depois de alguns segundos de desfrute do local, começo a apreciar toda aquela fauna. E se há ali de tudo….
Entretanto vejo chegar uma boa dúzia de gente “cá da minha”: idade avançada mas davam até ideia de pertencerem a alguma excursão que ali os tivesse despejado. Vinham em mólho. Por sorte delas, duas velhotas tiveram cabimento no sofá corrido, que acabara de ser abandonado por um casal de, de namorados, penso eu dado o que me foi possível apreciar. As velhas – vou tratá-las assim, não por desrespeito por quem tem idade, mas pelo que a seguir ireis ler e que são efectivamente coisas de velhas.
As velhas sentaram-se, puxaram as saias para taparem os joelhos, e logo ouvi bichanar:
- Estes tinham os traseiros quentes
- Cala-te, não comeces já…
Desde logo fiquei com a impressão que ia ter espectáculo. E de camarote! O bichanar das “velhas”, que pela pronúncia deviam ser de alguma província do Norte, depressa se tornou mais perceptível, principalmente para quem, como eu, estava tão perto delas. Estávamos os três virados na mesma direcção, pelo que o que eu via era precisamente ou quase o mesmo que elas viam. Por uma questão de respeito para com os meus leitores vejo-me forçado a relatar aquilo que os meus pobres ouvidos foram obrigados a escutar neste merecido e rápido descanso no Colombo.
As pessoas ali, como já frisei, eram muitas no seu vaivém desenfreado de tentar encontrar aquilo que pretendiam comprar. Sem saber bem como, detive-me a apreciar uma mini-saia que por ali deambulava quando ouvi:
- Ai, Maria olha para esta pouca-vergonha! Com um frio destes e esta lambisgóia com a saia quase a chegar-lhe ao umbigo. Santo Deus. Isto aqui aparece de tudo…quase que se lhe vê a passarola…
- Deixa lá Rosa, é gente nova, e não lhe chames passarola, chama-lhe antes passarinha, Passarola é para as mulheres casadas…
Tinha começado o “festival”. Fiquem atentos que eu prometi e vou cumprir: vou-vos contar o que aquelas duas “galegas” para ai disseram.
- Tá bem! Além de ser gente nova tiveram uma criação diferente da nossa…
- Tiveram a criação da pouca-vergonha é que foi. Essa é que é essa…
- Ai filha, olha lá a “pretalhada” que ali vem…Iche, Virgem Maria: um preto com chapéu encarnado e sapatos brancos. Aquela preta do rabo grande, ainda maior do que o teu, traz umas coisas metidas nas orelhas. Se calhar é para ouvir o Quim Barreiros..
- Qual Quim Barreiros, qual quê! Aquilo é para ouvir músicas lá deles. Se tu visses, uma vez fomos numa excursão da nossa Junta de Freguesia à praia da Murtosa. Tu não foste porque foi daquela vez que o teu Tonho te tinha chegado a roupa ao pelo e estavas mal do braço. Andavam lá uns pretos que eu só queria que tu tivesses visto: com uns rádios muita grandes e a música em altos berros e nunca ouvi o Quim Barreiros. Era mas é música de pretos. Quim Barreiros! Antes fosse,,,ai filha! Os pretos são cada vez mais. Qualquer dia isto é tudo deles. Daqui a pouco já são mais que os brancos…
- Isto aqui em Lisboa é uma podridão, é o que te digo. Não ouves estes pi-pis? È gente que quer sair das lojas sem pagar. Mas eles são espertos, em vez dum polícia á porta de cada loja, põe lá umas coisas que apitam quando não pagam…Hás-de reparar que aquele parvalhão ali está quase a dormir e quando aquilo apita abre logo os olhos…
Conclui que o “parvalhão” era eu. Realmente fechava os olhos não para dormir mas para tomar mais atenção ao que escutava…um olho aberto, outro fechado.. .
- Mas olha Maria que nem sempre é isso. Uma vez fui ca minha Jaquina lá a Leixões comprar um pijama para a besta do meu genro e quando saímos aquilo apitou e nós tínhamos pagado. Foi a empregada que não lhe tirou aquilo que os faz apitar. Há empregadas que valha-me Nossa Senhora…não sabem fazer nada…
- Não olhes, para não dares muito nas vistas. Aí do nosso lado esquerdo está uma gaja a dar de comer ao filho. Olha devagar…isso… mais para a esquerda…
- Pobre criancinha. Quase que não cabe no carrinho. Isto não são mães nem são nada. É o que eu te digo! E os pais dos gaiatos, se elas souberem quem são, são outros que tais. Mais valia que estivessem em casa a tratar das crianças. Pobre inocente que tem mesmo cara de fome. Olha como está chupadinho…é só fome, é o que é…atão tu já viste que ela tem o cabelo pintado de azul? Aquilo é o que quê?
- É o quê, Rosa? É droga. É só droga que ali anda…
- Maria olha lá aquela sirigaita ali a arranjar as unhas….que pouca vergonha. Ela havia era de ir apanhar azeitona lá para os lameiros ou tratar das vacas, para ver como é que as unhas lhe ficavam… Isto no fim, não valem nada. Abonecam-se todas por fora mas por dentro sabe lá a gente como andam. E ainda há homens que se embeiçam por coisas destas…
- E já reparaste no decote que traz? Com um tempo destes? Poucas vergonhas é o que a gente mais vê quando vem a estes sítios. Ainda bem que o meu homem não está aqui a ver…
- Ora deixa! Não vê esta vê outras. Então isto está cheio de mais do mesmo. O meu é que eu quero que não veja para aí nada de mais…
- Porquê? Estás com medo que logo à noite haja festa?
- Cala-te deserta estou eu…, e a Rosa deu uma gargalhada abafada que mais parecia um gracejo de adolescente
Meus caros amigos. Aqui ri-me para dentro. Não vou fazer nenhum comentário àquilo que ouvi. Isso pertence-vos a vós. Eu limito-me a passar para o escrito aquilo que consegui fixar e que me pareceu de maior interesse. Mas é assim: se achar que isto não tem importância, ou porque não retrata convenientemente duas realidades de um mesmo Portugal, ou porque você tem histórias bem melhores, então não leia mais. Ficamos amigos à mesma. Eu vou prosseguir.
- Olha, Maria! Outro disfarce. Esta vestiu só uns calçonitos por cima das calças pretas do pijama e toca a andar. Aquilo é que está ali uma coisa asseada….Deus me livre que uma filha minha andasse nestes preparos aí pelas ruas…Deus me guarde…
- Mas aquilo não são calças do pijama, chamam-lhe “legos” parece-me a mim…
- Ná, não deve ser. Legos comprava eu ao meu gaiato para ele brincar, eram assim umas pedaços de plástico que se metiam uns nos outros para fazer casinhas e automóveis…
- Seja legos ou lá o que for…cheira-me mal…Maria não me digas que tu…
- Eu? És parva ou quê? Eu sou muito asseadinha! Não vês que foi o gaiato do carrinho? Comeu e agora é isto. Espera aí que eu tenho aqui um frasco de água-de-colónia que comprei para a minha neta e pondo um bocadinho isto disfarça. Eu já pus, põe tu agora…
A minha gastadora de dinheiro faz-me sinal da porta de uma loja que era altura de ir pagar. Chamo-a, dou-lhe o cartão de crédito e fico por ali a espiar mais um pouco a conversa daquela gente a viver momentos num mundo completamente desenquadrado do seu. Eu não vos disse que era um “parvalhão”?
- O que vale é que agora, já há fraldas de deitar fora. Se fosse no tempo dos nossos gaiatos, em que as fraldas eram de pano e tinham que ser lavadas para serem usadas uma porrada de vezes…
- Parece-me que às fraldas de agora lhe chamam descartadas ou qualquer coisa assim. E mal sabes tu que me disseram que também já há cuecas dessas para se usarem por exemplo quando se fazem viagens muito grandes…
- Não pode ser….eu não acredito…
- Não acreditas? Então eu sou alguma mentirosa?
- Não, Maria. Não acredito é no que os meus olhos estão a ver agorinha...Diz-me que é mentira, Maria…
Olhei de soslaio e vi a Rosa e a Maria a persignarem-se quase em simultâneo. O olhar aterrorizado, vítreo, paralisado na direcção do seu lado direito. Numa décima de segundo pensei que ambas tinham acabado de ser alvo de um ataque de AVC. Vi-lhes tremer o queixo e olhei no sentido que a sua palidez apontava. Um casal de homossexuais, acabava de dar um “turbulento” beijo na boca.
Confesso que também eu fiquei perplexo. Imóvel. Petrificado. Já tinha visto cenas destas em vídeo, em fotos, na televisão. Ao vivo, em directo e a cores, nunca. Foi aqui a primeira vez. Não sei quanto tempo assim estive, mas sei que quando tentei ver as minhas “colegas” de descanso nos sofás de um recanto do Centro Comercial Colombo na última terça-feira antes do dia de Natal do ano da graça de 2010, elas já lá não estavam. Afastavam-se, em direcção à Zara, onde estavam os outros colegas da excursão.
Ainda se iam a persignar e a olhar para trás. Coxeavam ambas, pormenor que me havia escapado.
Quantas vezes já vos disse que eu era um “parvalhão”? ...