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"Bebe mas é está água...para... te transformares, lá mais para a Primavera, numa flor..."
Avis, 20 de Outubro de 2009
Querido amigo, espero que ao receberes esta te encontres de feliz e boa saúde na companhia de quem mais desejares que eu encontro-me bem graças a Deus.
Escrevo-te para te dizer que começou hoje a chover aqui pelas nossas terras de Avis, ao mesmo tempo que refrescou muito. Apesar dos alertas da Protecção Civil que previam grande temporal durante a noite, a verdade é que só começou a chover por volta das oito da manhã. Primeiro uma ou outra pinga depois um pouco mais a sério. Os agricultores andavam desesperados por uma seca tão prolongada. Em condições normais já para aí há um mês que devia ter começado a chover. Lembras-te que antigamente começava a chover por alturas do S. Miguel? Agora até a chuva mudou de hábitos.
Tal como os agricultores também eu estava ansioso que chovesse. E a minha avidez pela chuva era tanta que me meti no meu carrinho e fiz-me à estrada: Fonte Ferreira, Pisão, Alcórrego, Montinho, Covões, Cruzamento para a Barragem, de novo Alcórrego, Samarra, Monte do Carreiras, Adega de Fonte Paredes, Quinta de Santana, Largo da Feira, Avis. E quanta coisa eu vi e ouvi. Vou contar-te alguns pormenores pois sei que tens muitas saudades da nossa santa terrinha.
É curioso que as primeiras ervas que começam a verdejar são as que nascem nas bermas das valetas. Não sei se já reparaste. E é que não tenho grande explicação para isso, já que tanto chove nas bermas das valetas como um pouco mais para dentro dos campos. Mas acontece. Nas imediações da Fonte Ferreira a chuva “afracou” um pouco e eu saí do carro. Ainda cheirava a terra molhada. Gosto desse cheiro a terra molhada e lavada. Enche-me os pulmões de energia. Mas, curiosamente, lembro-me sempre nessas alturas do meu amigo Francisco Alexandre, sabes quem é? Aquele que faz esculturas muito bonitas? É isso, esse mesmo. Dizia eu que o meu amigo Francisco não gosta do cheiro da terra molhada porque lhe traz recordações de África quando o cheiro da terra molhada era proveniente do sangue derramado na guerra da Guiné. Mas eu, como tive a felicidade de não ter ido à guerra de África, gosto.
No Pisão, sete patos seguiam em fila indiana, atravessando vagarosa e cadenciadamente a estrada e obrigaram-me a parar. Deixei-os passar e fiquei extremamente feliz pelo modo como abriam e fechavam as asas enquanto caminhavam ou davam pequeníssimas corridas, como se de crianças felizes se tratassem e estivessem a desenvolver um qualquer jogo de agradecimento ao deus das águas.
Nas imediações dos Covões, parei de novo. Não saí do carro mas baixei um pouco o vidro do meu lado. Deitei os olhos aos céus para ver se, ali por entre o denso sobreiral, já se vislumbrava algum pombo bravo, pois que é natural estarem por aí a aparecer, para gáudio dos caçadores. Abri o outro vidro e apercebi-me de um diálogo curioso passado ali mesmo junto de mim num local onde as formigas tinham feito um enorme monte de sementes:
- Mãe, tenho frio…
- Cala-te, sementinha, e bebe esta água milagrosa que nos está a chegar. Ainda há meia dúzia de dias estavas cheia de calor e de sede. Agora tens frio. Irra, que não te dás temperado! Bebe mas é está água, para inchares, deitares raízes e te transformares, lá mais para a Primavera, numa flor, como o foram as tuas irmãs o ano passado.
- Mãe, mas eu tenho frio…
- Bolas, cala-te e bebe, já te disse!
Nas sementes, como nos humanos, nem sempre os pais têm a devida paciência para compreender os filhos. Fiquei triste com aquela discussão e segui caminho até porque a chuva se intensificara de novo e tive que fechar os vidros do carro.
Na quinta de Santa Ana verifiquei outro “milagre da natureza”. Os caracóis que se encontraram a estivar durante vários meses já se moviam lentamente. Talvez mais lentamente que os caracóis ditos normais, pois que têm essa particularidade acrescida de que, além de serem lentos por natureza, ainda por cima são alentejanos…
Desculpa esta piada de mau gosto mas saiu-me. Se calhar até não teve muita graça. Digo eu. Estou quase a chegar a casa. Continua a chover. Paro o carro no quintal, vou entrar em casa e oiço a minha mulher quase a gritar-me:
- Limpa bem os pés aí no tapete. Não venhas já sujar o chão para não ficar tudo numa lagariça! Maldita chuva que nunca mais pára!
Vá lá a gente perceber as pessoas….
Pronto amigo, vou terminar que esta carta já vai longa. Recebe um forte abraço deste teu amigo que apesar de estar longe sempre está perto de ti em pensamento e espero que não demores a dar-me notícias tuas.