O Jornal “Correio da Manhã” já o tinha publicitado na página 11 da sua secção de anúncios na edição de domingo, dia 23 de Novembro: nos 19ºs Jogos Florais da Freguesia da Ameixoeira, em Lisboa, um avisense foi distinguido com uma Menção Honrosa na modalidade de Conto, sendo que não foi atribuído o 1º Prémio que, a acontecer, teria “atirado” o nosso conterrâneo para o pódio. O tema proposto pela organização dos Jogos Florais foi: “O OUTONO" e a distribuição de prémios ocorreu no passado sábado, tendo mais uma vez sido dito alto e bom som o nome de Avis.
“DO CASTELO” teve acesso ao conto e deixa-o aqui reproduzido, para o partilhar com quem goste de ler.
Façam favor de se servir.
TITULO: OUTONO
O Dr. Gonçalves observa Amélia em princípios de Outubro e a conversa do médico é sempre a mesma coisa:
- Temos que ter cuidado com o Outono. É uma altura terrível…as defesas estão mais frágeis…ficamos todos mais vulneráveis…
Amélia já sabe esta conversa de cor. Também já sabe que tem de reforçar a dose de Cipralex, ou não vivesse ela com esta depressão desde a morte de seu pai.
Atrás das janelas do monte, Amélia desvia com cuidado a cortina rendada feita por sua avó. Espreita para o exterior e vê como as folhas já estão amarelecidas nos enormes plátanos que ladeiam o caminho de terra batida que se estende lá desde o fundo, junto à estrada de alcatrão, até ao monte. Este tinha um nome de que gostava particularmente: “O meu sonho”. Foi-lhe posto pelo avô. Ali naquele rincão de terra quase extrema entre um Alentejo que se estende por enormes pradarias e a Beira que já por ali deixa antever as suas enormes serranias, o avô Tomás construíra o seu sonho, que agora Amélia desfrutava, relembrando, da janela do seu quarto. Via lá ao fundo do lado esquerdo a mancha de castanheiros frondosos que estendendo-se encosta acima, abasteciam de castanhas não só a sua casa como dava para oferecer uns magustos àqueles que lhes pedissem. Na zona mais baixa do terreno, ficava a horta onde se criava de tudo um pouco: couves, abóboras e mogangos que agora já estavam colocadas em cima das paredes para apanharem o sol fugidio do dia e o frio das noites para “encascarem”, como lhe ensinaram. A horta dava milheirais enormes, que nesta altura do ano deviam de serem colhidos antes que as mengengras debicassem as maçarocas para comerem os bagos com os seus fortes bicos pontiagudos. A horta, regada pelo Ribeiro Galego que corria ao cimo, era um paraíso.
Amélia estava triste, já não gostava de nada e não gostava particularmente do Outono. Já vimos porquê: por causa das depressões que teimosamente a torturavam e que se tornavam mais penosas de suportar à medida que relembrava, uma e outra vez o passado. Parecia masoquismo. Aquela era mais uma tarde de tortura e sofrimento. Poderia pensar-se que gostava de se martirizar, mas era da própria doença. Olhando os campos ressequidos por uma seca que este ano teimava em prolongar-se, Amélia via como a terra estava gretada pelo vento frio. Mais gretada que a sua pele, mais que a sua alma. Antigamente não era assim: começava a chover por alturas do S. Mateus e a bendita água só deixava de cair lá para os princípios de Fevereiro. Sempre a chover, sempre! Mas tudo mudou. Dizem que foi por culpa do Homem. Não por culpa dela, Amélia, que nada fizera para que isto acontecesse. Sorri vagamente ao recordar que quando vinham as primeiras águas, o irmão mais novo, o José, ia logo à horta ver de bichinhos que retirava do interior das canas dos milhos para armar as esparrelas onde os piscos, por fome ou curiosidade, acabavam por ficar presos. Quando já não havia bichos, então recorria a azeitonas pretas, como isco. Até tordos apanhava. Ela não gostava que o mano fizesse mal aos pássaros, mas enfim, ele era rapaz e ela desculpava-o. Um dia haveria de mudar. E efectivamente mudou. Pois se tudo muda…Lembra-se de repente, num assalto de recordações mais ou menos tumultuosas, que também era pelo Outono que, depois de caírem as primeiras chuvadas, quando as terras ficavam prenhes de água e sempre que a seguir aparecia um solinho quente, as formigas de asa saíam dos seus buraquinhos e se punham a voar. Cansadas, muitas delas acabavam por ir cair nos ribeiros e nessas alturas era certo e sabido que o pai, com uma cana da Índia onde atara um fio de coco com um anzol e um isco, apanhava peixe com fartura ali no Ribeiro Galego, que nessa época ainda levava alguma água e estava cheio de pegos fundos. Depois a Mãe, que Deus a tenha lá em descanso, fazia uma sopa de peixe deliciosa, com muito poejo, que ela nunca mais comeu depois que essa santa desapareceu. Não compreendia porque é que as formigas de asa depois do primeiro voo, cortavam as asas com as suas próprias mandíbulas. Matavam-se a elas próprias. Seria por ser Outono? Não tinha resposta para essa dúvida.
Amélia repara agora nas enormes romãzeiras que ficam ali mesmo junto à casa. Estão carregadas. Também já são muito velhas. Se calhar tão velhas como ela. Mesmo assim cumprem perfeitamente a sua função: dão grandes e sumarentas romãs, tal como os marmeleiros que rodeiam a horta dão enormes marmelos. As folhas destes já lhe caíram, mas os marmelos, amarelinhos lá estão à espera que alguém os colha e faça umas taças de marmelada ou simplesmente os cozam e comam com um pouco de açúcar. Igualmente sem folhas mas carregadinhos, estão os dois diospireiros que, não desfazendo, davam os melhores diospiros que havia nas redondezas: não travavam nada a boca. Logo à tarde iria pedir ao marido que lhe colhesse umas romãs e uns marmelos para ela provar. Se tivesse vontade haveria até de comer um diospiro…
Amélia sente sono. Efeitos dos antidepressivos. Mas hoje, não sabe porquê, não quer adormecer. Hoje vai ser mais forte que os comprimidos. Quer mais que nunca reviver uma vida que foi sua mas que o tempo tão rapidamente gastou. Fixa a mancha amarela-
-encarniçada dos castanheiros e prossegue na sua saga de recordações e de martírio…
….No Outono as castanhas caíam dos castanheiros, mas muitas delas não saíam dos ouriços. Para as apanhar, havia que arranjar um pequeno pau em forma de martelo para com ele bater nos ouriços e assim as castanhas saírem e depois serem juntas dentro das cestas de vime que o Ti Zé da Lola fazia e vendia. Uma vez cheias, as cestas eram despejadas para sacas, que depois de atadas eram transportadas pelos dois burros que o pai tinha. Por cima da albarda, uma saca de cada lado, atadas com duas cordas cruzadas e ainda mais uma saca em cima. E os burritos lá seguiam carregados, por um carreiro mau de andar, a caminho de casa. Ali, as castanhas eram descarregadas e colocadas a secar numa dependência própria da casa, denominada de “secadeiro”. Amélia abre a boca num bocejo sonolento mas reage e não dorme, não pode dormir: lembra-se tão bem…por baixo das telhas do secadeiro, havia um segundo tecto formado por ripas, separadas entre si por uma distância suficientemente curta para que as castanhas não caíssem de ali abaixo, pois era para lá que o seu avô, o seu pai e sabe lá já a Amélia mais quem, as transportavam de seguida carregadas às costas e subindo uma escada de acesso bastante aprumada. No chão era feito um lume que ficava a arder todo o dia e que de noite se mantinha aceso até se acabar a lenha. O lume mudava de local no lajeado, correndo os quatro cantos da casa e o meio, sendo que todos os dias as castanhas eram mexidas lá em cima com uma grande pá de madeira. Assim, a pouco e pouco, elas iam secando lentamente e transformavam-se nas deliciosas castanhas secas ou piladas. Mas uma vez secas, havia que as descascar. Amélia sabe como era. Amélia sabe e recorda com emoção esses momentos. É por isso que não pode dormir…quer viver. Relembra que, por ser muito arrapazada em gaiata, ainda pisou castanhas – uma só vez. Para descascar as castanhas, a coisa passava-se assim: um pau grosso era colocado horizontalmente em cima de dois apoios que mais não eram que dois troncos colocados em forma de xis. O pau horizontal situava-se a uma altura um pouco superior à altura da cintura. Era aí que se iriam apoiar como garras, as mãos calejadas de outras lides agora viradas para a descasca da castanha. Estas, vindas do secadeiro já devidamente secas, eram colocadas dentro de uns cestos feitos de vergas de cana em que, a uma boca larga se seguia uma zona mais bojuda, arredondada. Os homens entravam então para dentro dos cestos e com as botas cardadas, iam saltando em cima das castanhas, servindo-se, para se impulsionar, do apoio que faziam com as mãos no tal barrote colocado horizontalmente à altura da cintura. Pisavam e repisavam sentindo que a cada salto, debaixo das suas botas, havia castanhas que iam perdendo a casca. De tanto pisada, a casca transformava-se em “moinha”. Havia que separá-la das castanhas. Então era pegar nos cestos pelas asas e abaná-los em semicírculos, ora para a esquerda ora para a direita, de modo que a “moinha” fosse caindo para o chão pelas frestas das vergas da cana, ficando algumas castanhas já completamente descascadas. Mas não todas. Por isso repetia-se a operação uma e outra vez, tantas até as castanhas ficarem todas limpas. Manel Galapito, que Deus tenha, fora um dos melhores e mais rijos pisadores de castanhas. Tinha força até mais não. Certa vez a gaiata Amélia-Maria-Rapaz quis experimentar e ele fez-lhe a vontade. As pernas delgadinhas dentro de umas botas de borracha demasiado largas para elas, foram largadas para dentro de um cesto. Amélia lembra-se bem: mal chegava ao pau de apoio, pulou duas ou três vezes, cansou-se e depois disse para o Manuel Galapito: - Ó ti Manel, isto é um trabalho muito duro…
Manuel Galapito que era mais de trabalho do que de falas, apesar de tudo sorriu, segurou-a por baixo dos braços, tirou-a de dentro do cesto e respondeu-lhe enquanto a colocava no chão:
- É para que saibas…
Ti Manel Galapito suicidou-se no Outono do ano seguinte a este episódio. Vá lá saber-se porquê…talvez por ser Outono e por nesta altura as pessoas dizerem que a queda da folha é uma época difícil de atravessar. Ti Manel não a conseguiu atravessar.
O fraco sol outonal, entretanto rodara mais um pouco e a sala ficou mais aquecida. Amélia sentiu uma sonolência mais forte e ia começar a dormir quando a sua filha Joana, que morava ali perto a veio despertar desse adormecimento.
- Mãe, trago-lhe aqui uma coisa de que gosta muito…
- Já não gosto de nada, filha. É Outono e parece que nesta altura ainda me sinto pior, mais agarrada a um passado que sei não poder voltar a viver, mas que teimosamente me massacra. Estou doente minha filha. O Outono só tem coisas más…
- Calma mãe. Não é assim. Não é que eu não goste de a ouvir contar as suas experiências do campo vividas por esta altura do ano, mas a mãe já mas contou tantas vezes que hoje quero ser eu a falar consigo. Está bem?
- Mas o que é que aí me trazes?
-Calma mãe, vamos falar um pouco. Melhor, vai-me escutar um pouco, está bem?
-Fala, disse Amélia um pouco incomodada mas simultaneamente curiosa por saber o que a filha lhe ia dizer.
- A mãe martiriza-se com as suas recordações, os seus medos, os seus fantasmas que cada Outono lhe traz. Vou-lhe dar dois ou três exemplos de situações de que se a mãe se lembrasse, veria que o Outono não é assim tão cinzento como a mãe o pinta. Então diga-me lá uma coisa: a mãe sabe quando é que nasceu o seu primeiro neto? Foi no Outono, a 25 de Novembro. E se bem me lembro, a mãe disse-me certa vez que o nascimento do seu primeiro neto lhe tinha dado quase tanta alegria como o meu próprio nascimento. Lembra-se? Sim, então porque o esquece? E os magustos do S. Martinho? A casa a abarrotar de gente, o enorme magusto que ainda hoje fazemos no antigo secadeiro com todos os empregados do monte, porque é que a mãe se refugia aqui e é preciso eu vir buscá-la à força para descer até junto de nós? Depois de lá estar já gosta. Mas depois esquece… E o dia de Santos, com toda essa “canalha” pequena a vir pedir os Santinhos? Há lá festa mais bonita do que recebermos na nossa casa toda essa criançada que ainda agora nos vai aparecendo a querer umas castanhas, umas romãs ou uns caramelos que a mãe tanto gosta de ofertar. Mas depois esquece. E …
- Olha filha: se calhar tens razão e se me desses mais atenção eu viveria melhor. Mas…já agora passa-me aí a caixa do Cipralex e um copo de água…
Pseudónimo: Amélia
"DO CASTELO" endereça parabéns ao autor que pediu anonimato